sábado, 28 de agosto de 2010

A banalização do montanhismo e seus novos desafios

Hoje em dia é lugar comum dizer que o montanhismo não é mais o mesmo misto de esporte e exploração que era antigamente. Quando Hillary e Norgay chegaram ao cume do Everest, não existia a tecnologia e a facilidade que existe hoje em dia. Os chamados “puristas” reclamam que houve uma banalização do esporte com as expedições comerciais e que já não existem os desafios de antigamente, já que os principais cumes do mundo já foram conquistados. Além disso, culpam as expedições comerciais por uma crescente falta de ética no esporte.

Atualmente, qualquer um com um bom preparo físico e US$ 60,000.00 pode pagar a empresas para que o levem até o cume do Everest, ou valores menores para outras montanhas mais baixas. A Adventure Consultants, cujos vários clientes e guias morreram na tragédia do Everest em 1996 – entre eles o seu criador e grande montanhista Rob Hall –, colocou nessa última temporada (2010) 12 pessoas no cume do Everest, entre sherpas (carregadores), guias e clientes (4). Em 2006 essa empresa guiou a primeira brasileira a chegar ao topo do mundo, Ana Elisa Boscarioli. O sirdar (líder dos carregadores sherpas) Ange Dorjee Sherpa chegou ao cume pela 15ª vez!

O recorde de 20 ascenções ao cume do Everest é do nepalês Apa Sherpa, e o mais jovem alpinista a escalar a montanha foi Jorge Romero, filho de 13 anos do atleta de corrida de aventura Paul Romero, pelo lado norte chinês (na verdade tibetano), que não tem restrição de idade. Pelo Nepal a idade mínima é de 16 anos.

Outras empresas também atingem bons níveis. A Mountain Madness, cujos alguns clientes e guias também morreram na tragédia do Everest em 1996, entre eles o seu fundador e exímio montanhista Scott Fischer, também já colocou 40 clientes no teto do mundo, desde 1994. O American Alpine Institute leva anualmente 3 guias e 9 clientes para a montanha, além dos seus sherpas. Em 2006 o preço foi de US$ 55,000.00 e em 2010 foi US$ 63,000.00. Isso fora as passagens até Katmandu (Nepal) e os equipamentos individuais. Outras empresas menos famosas, como a Asian Trekking, que organizou a expedição que incluiu os brasileiros Victor Negrete e Rodrigo Raineri, que resultou na morte de Victor em 2006, também levam pessoas com pouca experiência e muita grana para os maiores picos do mundo.

Todas estas empresas também têm programas para levar montanhistas aos 7 Cumes, ou seja, os cumes mais altos dos 7 continentes:

Everest (8.850 m), Nepal/Tibet (China), Ásia



Aconcágua (6.962 m), Argentina, América do Sul



Kilimanjaro (5.895 m), Tanzânia/Quênia, África



Elbrus (5.633 m), Rússia, Europa



Pirâmide Carstenz (4.884 m), Indonésia, Oceania (continente Australasiano);



McKinley, também conhecido como Denali, (6.194 m), EUA (Alaska), América do Norte



Maciço Vinson (4.897 m), Antártica.



Além destas principais montanhas, diversas empresas de turismo e escolas de montanhismo levam às mais destacadas montanhas do mundo, nos Andes, Himalaia, Alpes Europeus, EUA e aonde mais o cliente quiser ir e puder pagar. Assim, não é mais preciso ser um expedicionário aventureiro nato que organiza suas próprias expedições com as dificuldades logísticas inerentes. Basta ter o dinheiro no bolso e contratar guias experientes que já sabem os caminhos de cor.

Assim, os críticos do montanhismo comercial dizem que o montanhismo perdeu seu romantismo ao virar um negócio de milhares de dólares.

Considerado o maior montanhista de todos os tempos, Reinhold Messner foi o primeiro a escalar o Everest sozinho sem a ajuda de carregadores sherpas e oxigênio suplementar. Também foi o primeiro a escalar os 7 cumes e todas as 14 montanhas com mais de 8.000 m, as chamadas “eight-thousanders”. Todas sem ajuda de proteções fixas (dispositivos de segurança que são deixados na montanha) e sem o uso de oxigênio suplementar.

Até hoje somente 22 pessoas conseguiram escalar as 14 oito-mil, e somente 10 conseguiram fazê-lo sem oxigênio suplementar.

As 14 montanhas com mais de 8.000 m, além do Everest, são:

K2 8611 m (Paquistão/China)



Kangchenjunga 8586 m (Nepal/India)



Lhotse 8516 m (Nepal/China)



Makalu 8485 m (Nepal/China)



Cho Oyu 8201 m (Nepal/China)



Dhaulagiri I 8167 m (Nepal)



Manaslu 8163 m (Nepal)



Nanga Parbat 8126 m (Paquistão)



Annapurna I 8091 m (Nepal)



Gasherbrum I (Hidden Peak) 8080 m (Paquistão/China)



Broad Peak 8051 m (Paquistão/China)



Gasherbrum II 8034 m (Paquistão/China)



Shishapangma 8027 m China



Messner, grande criador do conceito de escaladores puristas, corrente hoje em dia liderada pelos editores e leitores da revista americana Alpinist, entende que subir uma montanha com proteções fixas e oxigênio suplementar é o equivalente a trapacear a montanha. Mas, para eles, passar sem os cilindros de oxigênio ou proteções fixas não tem nada a haver com a busca de um troféu. É mais uma declaração filosófica, uma expressão da capacidade humana levada aos seus limites físicos, que é, segundo eles, a verdadeira essência do montanhismo. Pensando friamente, os alpinistas que usam oxigênio suplementar não estão escalando, e sim reduzindo a montanha em várias centenas de metros.

Há alpinistas como o italiano Simone Moro, que apesar de já ter escalado vários picos de mais de 8.000 m sem oxigênio, não está buscando o objetivo de escalar todos os 8.000s. Ele quer cumes ainda não escalados de 7.000 m ou mais, ou ser o primeiro em escaladas invernais nas montanhas de mais de 8.000 m do Paquistão, ou outras façanhas mais raras.

Atualmente, desde que Norgay e Hillary “conquistaram” o Everest em 1953, segundo as últimas estatísticas, a montanha (chamada de Chomolungma, ou "Deusa mãe do mundo", em tibetano, e de Sagarmatha, "Cabeça que toca o céu", em nepalês) foi escalada por 2.557 pessoas, quase a metade delas nos últimos cinco anos e cerca de 80% delas após 1991. Assim, percebe-se que com as novas tecnologias e empresas de guias, realmente houve uma banalização da montanha.

Pouca ou quase nenhuma importância se dá aos sherpas, os carregadores que sobem e descem a montanha várias vezes durante cada temporada para montar os acampamentos onde os clientes vão dormir, para monitorar a colocação das escadas de alumínio que permitem a travessia do Glaciar (cascata de gelo) do Khumbu, e que muitas vezes são os responsáveis por praticamente “carregarem” e serem “babás” dos clientes, além de resgatarem escaladores feridos ou doentes. Em vez de 2.557 pessoas, quantos teriam chegado ao topo do Everest atualmente sem a ajuda dos sherpas e das expedições guiadas? O número seria drasticamente reduzido, com certeza.

Há relatos de alpinistas experientes que viram vários clientes de expedições comerciais com diversos sinais de problemas, mas que continuaram escalando mesmo assim. Afinal de contas, uma empresa que cobrou US$ 60,000.00 para levar um cliente ao cume tenta a todo custo fazê-lo, às vezes esquecendo-se ou ignorando o horário limite para voltar. No Everest considera-se o horário de segurança para se chegar ao cume pela rota da aresta sudoeste, a mais popular, às 13h00. Caso não se chegue ao cume à essa hora, esteja onde estiver, é recomendável que se volte, pois há o risco de chegar ao acampamento abaixo depois de escurecer, o que pode resultar, principalmente, em perda de orientação na trilha, isso sem contar que o ataque ao cume e a volta ao acampamento 4 implica em cerca de 50 horas sem dormir e em movimento constante.

Segundo esses relatos, o cansaço e despreparo dos clientes às vezes são evidentes pela linguagem corporal deles. Pode-se dizer muita coisa pela maneira como alguém se curva sobre o piolet ou se pendura numa corda fixa, assim como é possível perceber o estado de uma pessoa pelo número de passos que consegue dar antes de parar para descansar e pela energia e confiança desses passos.

Às vezes, não raro, muitos dos clientes não têm qualquer aprendizado nas montanhas e não dominam nem mesmo as técnicas fundamentais. Talvez já tenham sido guiados ao topo de picos menores, mas ser guiado cria uma mentalidade de criatura guiada. Você não aprende a cuidar de si mesmo.

Se alguém me diz que esteve no topo de um pico de 6.700 m, eu vou querer saber da qualidade dessa experiência. Alguma vez precisou saber do paradeiro das suas luvas à noite, debaixo de uma tempestade? Alguma vez teve de encontrar o caminho de volta debaixo de uma nevasca ou de enfrentar um turbilhão de neve sem óculos de proteção? Alguma vez já cozinhou a sua própria comida? Já executou a tarefa básica de montar sua própria barraca, às vezes sob fortes ventos? Em situações extremas, você poderia confiar em si mesmo? Afinal, você é auto-suficiente?

É comum, mais do que se pensa, encontrar vários corpos no Everest enquanto se sobe a montanha. Os escaladores tentam não pensar na morte durante a escalada e ninguém quer escalar uma via onde haja pessoas mortas, mas os corpos largados no caminho lembram o escalador dessa possibilidade o tempo todo. Num local como o Everest, onde carregar o próprio corpo já é extremamente difícil, imagine o que será carregar de volta um outro corpo inerte. Um em cada oito alpinistas não volta do Everest.

Existem vários cadáveres no Everest, espalhados desde o acampamento-base avançado até pontos próximos do cume. Há até pouco tempo atrás, centenas de metros abaixo do acampamento-base avançado, havia uma alpinista perto da trilha, embrulhada numa lona azul. E, por anos, até que o vento acabou soprando seus restos para o precipício do flanco do Kangshung, toda expedição ao Everest que escalou essa rota passou por Hannelore Schmatz, um marco esquelético logo acima do colo sul, com seus cabelos castanhos ao sabor do vento.

Há uma obsessão compulsiva que faz com que os escaladores percam a ética na montanha. Aliás, ética é ética em qualquer lugar, não só na montanha. Coletivamente, não estamos sujeitos a nenhum código formal de conduta, mas estamos ligados pela chamada “irmandade da corda”. Há rumores de que a morte do brasileiro Vitor Negrete foi resultado de uma série de fatores desencadeados por furtos aos seus equipamentos.

As tensões de escalar em grandes altitudes acabam por revelar o verdadeiro caráter de uma pessoa: essas tensões arrancam as máscaras e mostram quem você é de fato. Lá em cima não existem mais todas as regras sociais por meio das quais se ocultar, com as quais desempenhar papéis. Você se torna a essência do que é na verdade.

É o cúmulo ver um escalador agonizando à beira da morte e não prestar ajuda em troco de chegar ao cume. As pessoas passam às vezes anos se preparando para o Everest e gastam fortunas, e assim não querem ter que dar meia-volta para ajudar alguém, abrindo mão do cume, mas a vida humana é mais importante do que qualquer montanha.

Na temporada de 2006, um inglês que fazia parte da expedição onde também estavam os brasileiros Victor Negrete e Rodrigo Raineri, chamado David Sharp, foi abandonado à própria sorte. Segundo as denúncias, cerca de 40 montanhistas passaram por ele quando agonizava, e ninguém se ofereceu para ajudar.

O neozelandês Edmund Hillary, uma das duas primeiras pessoas a alcançar o pico do Everest, juntamente com Tanzing Norgay, condenou a atitude dos cerca de 40 montanhistas que negaram ajuda ao britânico que morreu por falta de oxigênio. Ele ainda culpou a obsessão de pisar a todo custo no topo do mundo que marca hoje as expedições.

"Minha expedição nunca teria deixado um homem morrer sob uma rocha. Isso nunca ocorreria, seria uma catástrofe", disse Hillary ao jornal New Zealand Herald.

Entre os montanhistas que testemunharam os problemas de Sharp estava o neozelandês Mark Inglis, o primeiro homem a subir o Everest com duas pernas artificiais. Ele reconheceu que viu Sharp, mas que as condições o impediram de prestar assistência.

A resposta não convenceu Hillary, 87 anos. Ele disse que a razão da atitude é a vontade dos montanhistas de acrescentar o Everest a seu currículo, devido a interesses comerciais.

"Eles só querem subir ao pico. Hoje, pouco importa que alguém esteja em perigo. Portanto, não me impressiona alguém morrer debaixo de uma rocha", disse o alpinista pioneiro.

De acordo com um estudo da Universidade de Otago, publicado pelo New Zealand Herald, David Sharp poderia ter sobrevivido se tivesse sido ajudado a tempo com um tanque de oxigênio.

Por isso eu considero que um verdadeiro montanhista não é aquele que chega ao cume à qualquer custo. Muitas vezes, esse tipo de montanhista chega ao cume, mas não consegue voltar.

Além da ética humana, que supera a simples educação e cordialidade, é um exemplo a atitude de um escalador consciente das suas limitações e das limitações que eventualmente a montanha impõe e das quais você não tem como lutar contra. Uma estória exemplifica bem isso.

Em 1996, a fatídica temporada do Everest, um alpinista sueco chamado Göran Kropp fez uma esplêndida tentativa de chegar ao cume sozinho. Mas, uma hora antes de chegar ao topo, calculando suas reservas de energia com aquela frieza de raciocínio que só se adquire depois de muita experiência em grandes altitudes, Kropp deu meia-volta e desceu. Ele havia pedalado 11.200 quilômetros por toda a Europa e Ásia, sozinho, e escalou 8.690 metros, também sozinho, sem apoio dos sherpas e sem oxigênio suplementar. A uns poucos metros de seu objetivo, fez os cálculos e decidiu: outro dia.

Kropp é um exemplo magnífico de autodisciplina e instinto de montanhista. Chegar ao cume é apenas metade de toda e qualquer escalada. Voltar é que são elas – a linha de chegada está lá embaixo, não lá no alto. Durante a descida, estamos mais fracos, cansados, há mais tempo na montanha e por isso mais sujeitos ao mal da altitude e, por tudo isso, mais propensos a acidentes. A decisão de fazer meia-volta nunca é fácil. Mas é uma decisão que honra grandemente a montanha e a própria pessoa.

Feitas essas considerações acerca da banalização do montanhismo e da atual falta de ética generalizada, eu digo que entendo que o montanhismo, apesar de tudo, ainda é um esporte desafiador.

Respondendo aos críticos eu digo que ainda há várias possibilidades: escalar sem a ajuda de carregadores, escalar sem oxigênio suplementar e, principalmente, escalar novas vias.

Os “puristas” que eu citei, são um bom exemplo de se manter o desafio: sempre escalar num número reduzido de pessoas, com o mínimo de equipamento é uma forma de manter o desafio imaculado. Além disso, escalar sem a ajuda do oxigênio suplementar é uma forma de superação que ainda pode ser feita, principalmente nos 14 picos com mais de 8.000 m que existem no mundo, todos no Himalaia.

Novas vias também são um desafio hibernando. Nunca ninguém escalou a rota leste do Everest, pelo flanco do Kangshung. Alguns poucos tentaram, e o ponto mais alto alcançado foi aos 7.437 m por uma expedição em 1994. Então, como não podem existir novos desafios? Esse é só um exemplo de uma via a ser conquistada, um desafio à espera.

Mas, a resposta definitiva aos que dizem não haver mais desafios no montanhismo é o fato de que das 109 montanhas mais altas do mundo, 5 ainda não foram escaladas, todas com mais de 7.200 m. Para estes críticos, vou dar uma ajudinha e listar os nomes dos picos, com sua altura, colocação no ranking entre os 109 cumes com mais de 7.000 m, e localização:

Gangkhar Puensum – 7.570 m – 40º – Butão/Tibete



Saser Kangri II – 7.495 m – 49º – Cachemira (Índia)



Labuche Kang III Leste – 7.250 m – 94º – Tibete



Karjiang – 7.221 m – 100º – Tibete



Tongshaonjiabu – 7.207 m – 103º – Butão/Tibete



Isso sem contar as montanhas com menos de 7.000 m, que podem ser tão ou mais difíceis que qualquer uma. Por exemplo: os poloneses, que não têm montanhas muito altas, durante os tempos da cortina de ferro se especializaram em fazer escaladas invernais. Será que muitas pessoas têm coragem de subir o Aconcágua no inverno, como fizeram Rodrigo Raineri e Vitor Negrete? Definitivamente, o montanhismo é um esporte exploratório com muitos desafios a serem vencidos.

Boas trilhas!

Bulha.

Nenhum comentário:

Postar um comentário